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Entrevista com Renato Pinto acerca do incêndio no Museu Nacional

1- Para você que trabalha com História Antiga, qual a sensação de ver o museu queimar, visto que ele possuía em seu acervo peças referente a esse período histórico; e qual sentimento ficou após o ocorrido?

O acervo do Museu Nacional era o mais rico e complexo do país. As coleções ali existentes abarcavam diversos séculos de História, das mais variadas regiões do mundo. Coleções que vem do início do séc. XIX, que tomaram décadas e décadas para serem constituídas. Um trabalho hercúleo de gerações de pesquisadores. Eram inestimáveis. Sobre os estudos daquela farta documentação textual, visual, oral e material se debruçavam estudiosos do mundo todo. Eram dissertações, teses... uma enorme quantidade de pesquisas em andamento, além das centenas de outras que haviam sido finalizadas e laureadas nas últimas décadas. Não seria preciso inventariar neste espaço os documentos, dos mais diversos tipos, que foram perdidos, pois a mídia já tem feito esse trabalho. Não só o país, mas também o mundo perdeu no incêndio referências históricas, antropológicas insubstituíveis, irreparáveis. A finitude imposta pelo acontecimento, sua irreversibilidade, é o aspecto mais brutal em tudo. A sensação de perda se soma à frustração. Para o caso dos estudos sobre a Antiguidade no Brasil, significa também a condenação de muitos estudiosos do país à incontornável procura por seus objetos longe do país. Havia no Museu Nacional coleções e objetos individuais que significavam o primeiro contato de estudantes brasileiros com a cultura material do Mundo Antigo. Poderiam estudar tais peças ou serem apresentados àquele universo tão distinto de nossa realidade histórica sem terem de se deslocar para o exterior, por exemplo. O Museu Nacional e seu acervo sempre foram alvo de debates, e muito se discutiu a respeito de suas funções, de seus métodos, de seus propósitos. Seus significados nacionais, imperiais, políticos e socioculturais. Seu papel, ou antes, seus papeis mais polissêmicos em nosso tempo. Nunca houve total consenso sobre tais pontos, é verdade. Todavia, qualquer discussão só era possível na medida em que tínhamos algo com o que trabalhar, sobre o que falar. Parece óbvio dizer isso, e talvez o seja, mas o fato é que agora todo esse debate se depara com o fim de seu cerne, e de seu ponto de partida: o acervo em si.

2- Algumas semanas após o acontecimento, quais medidas você acha que devem ser tomadas para que isso não se torne recorrente?

Passados alguns dias, observamos muitos dedos em riste. Todas as discussões têm gerado muito mais calor do que luz. A questão do orçamento direcionado à manutenção do Museu Nacional, ou de sua escassez, ganha a maior parte das considerações. O prédio e seu acervo demandavam grandes volumes de investimento. A importância daquele espaço e do que ele guardava explicam a necessidade de tais somas. Sem isso, não haveria como manter o museu funcionando. O real valor dos investimentos que seriam tidos como ideais não parece estar tão claro, mas, temos certa percepção de que o dinheiro que chegava estava aquém dessa estimativa, seja ela qual for. Se concluirmos que o Museu precisava de mais investimento financeiro, então parece lógico dizer que qualquer corte orçamentário que afetasse os valores recebidos seria deletério à sua existência. O que aconteceu logo após o incêndio foi a partidarização da culpa. Talvez inevitável num cenário tão tenso como o que vivemos neste momento, perto das eleições, este caminho não parece conduzir a uma investigação eficaz na identificação das responsabilidades, em todas e quaisquer que sejam as suas instâncias. Num segundo momento, não distante do primeiro movimento, a existência do Museu Nacional como entidade pública foi questionada. Surgiram vozes que apregoavam as privatizações dos espaços e acervos museológicos. Mais uma vez, esse debate está inseparável daquele que se apresenta nas eleições de 2018. O país terá de lidar com esses fatos, com essas conexões políticas. Seria uma quimera imaginar que o incêndio do Museu Nacional se descolasse dessas preocupações e que deixasse de ganhar vulto nas campanhas eleitorais. Mas, talvez, seja possível, em paralelo a essa natureza partidária e ideológica que o fato tomou, buscar algumas novas perguntas e, quiçá, novas respostas. As investigações precisarão contemplar os conselheiros do museu, e seus administradores diretos. Chamá-los pra explicarem como as coisas estavam. Está claro que não foi o último corte orçamentário que impediu a instalação de um sistema mais eficiente de controle de incêndio, embora, obviamente, tenha piorado essa deficiência. É bem possível que as atas de reuniões das câmaras responsáveis pelo museu tenham também se perdido no incêndio. Se ainda existirem, as análises dos debates e das decisões dos conselheiros são uma vereda a ser seguida. Que demandas eram feitas ao governo federal? O governo federal respondia? Como era decidida a distribuição do orçamento? Onde foram buscados novos recursos? Será que a gestão do Museu poderia ter usado toda sua verba para um projeto anti-incêndio, mesmo em anos anteriores? O que significaria isso? Resultaria no não pagamento de salário aos funcionários? Em cortes de energia e água? Fechamento do espaço ao público? E, ao final, não teria sido melhor garantir a segurança do acervo antes de qualquer outra preocupação funcional? As normas legais permitiriam isso? E lembremos que o papel e a responsabilidade do governo federal têm de estar presentes nessa equação todo o tempo. Como é possível conceber congelamentos nos investimentos em espaços públicos tão estratégicos à cultura e à educação? Depois da perda do acervo, nada mais faz sentido, no caso do Museu Nacional. Mas pensar na questão “prioridade” e nas limitações dos investimentos públicos em museus faz todo sentido para os outros museus no país! Pois eles existem e precisam de nossa total e contínua atenção. Não basta apenas conhecer esses espaços, saber que existem, embora isso seja fundamental, logicamente. O Museu Nacional não era uma entidade totalmente desconhecida. Longe disso. Documentários televisivos foram produzidos sobre ele ao longo dos anos, e no meio acadêmico era muito comentado, entre os estudiosos, só para ficarmos em alguns poucos exemplos de formas de divulgação. Recebia um volume de visitantes até significativo, que reconhecia o local como uma importante referência cultural e histórica. Mas, a despeito disso tudo, não me parece que tenha recebido a atenção que merecia, principalmente dos poderes públicos instituídos. A importância de seu acervo e de seu significado não gerou o destaque esperado. É tarefa complexa estabelecer uma solução para o problema do reconhecimento da importância de nossos acervos museológicos. Essa importância para a sociedade, e a legitimação dela, passa pelo debate complexo (mas necessário) do que significa o patrimônio museológico para a população de um país como o Brasil. Será preciso exercer pressão contínua sobre as gestões dos museus, para que deixem claro quais são suas limitações, suas políticas de prioridade, e que nós todos, como sociedade, cobremos dos órgãos públicos de fomento os investimentos apropriados, e que rejeitemos cortes orçamentários arbitrários em um setor tão importante ao nosso patrimônio cultural, como são os museus. Um amplo debate em vários setores educacionais e culturais deveria se instalar. Já estamos muito atrasados nisso, como ficou claro. O problema agora é encontrar os caminhos para essas grandes reflexões, inseparáveis que estão dos outros destinos políticos pretendidos para o país. Seja como for, não podemos esquecer, as responsabilidades pelo incêndio precisam ser apuradas até o fim, com afinco.

3- Levando em consideração que a própria Universidade possui um grande número de documentos e de acervos, como você vê as medidas de preservação destinadas aos mesmos?

Aqui um exercício de autocrítica é importante. Parece-me lógico que a segurança dos usuários das instalações tem de ser a prioridade. Em seguida, a preservação dos documentos e acervos. Partimos, então, para o funcionamento dos espaços a fim de exercerem suas funções acadêmicas e administrativas. As verbas são sempre limitadas. Onde investir o que recebemos depende de efetivamente levarmos a cabo uma ordem nas prioridades. Precisamos saber em que estado estão os mecanismos de proteção. Uma verificação com periodicidade bem estabelecida por parte dos órgãos de combate a incêndios é essencial. Antes mesmo do incêndio do Museu Nacional, demonstramos preocupação com as estruturas de acesso e de proteção do CFCH ao chamarmos a Reitoria para uma avaliação profissional de suas estruturas. Com o trágico evento do Museu Nacional, ficamos mais sensibilizados para o problema. Há muito que ser feito, ainda, mas tem havido um diálogo mais intenso entre conselheiros e reitoria a fim de reavaliar os riscos e estabelecer um plano de ação que seja rápido e eficaz. Isso tem de ter continuidade, e é preciso que cobremos uma constante atenção com a liberação de fundos, na medida suficiente para atender os requisitos de segurança e de funcionamentos dos espaços e acervos, e com a gestão e aplicação dessas verbas.

4- Acerca do descaso que sabemos haver referente a centros culturais, o que se pode apontar como causador do desinteresse? E quais caminhos teremos que trilhar para mudar tal realidade?

Não pode uma perda dessa magnitude passar em brancas nuvens. O que mais notamos neste momento são cortinas de fumaça criadas no jogo das mútuas acusações, que embotam nossa visão, para fazer uma aproximação com o triste ocorrido. Por mais dolorosa que tenha sido a destruição do Museu Nacional, e até mesmo por causa disso, tem de haver algum aspecto didático nisso tudo.

Outra coisa é mesmo a divulgação de nossos acervos. Precisamos continuar a falar deles, incentivar pesquisas sobre eles ao mesmo tempo em que debatemos sobre a importância dos museus para a população. Os resultados não serão necessariamente imediatos ou lineares, mas passam por essa difusão de informações. Os debates acerca do patrimônio nacional e mundial e de suas especificidades precisariam começar já na educação infantil e os museus são necessariamente parte inescapável dessas preocupações, dessas equações. Além disso, o museu precisa perder sua aura elitista, que ainda perdura em alguns segmentos. Como fazer do museu um local que consiga ter algum significado para a diversidade de nossa população? E para outras sociedades, também, na só pra nós, brasileiros. Espaços que nos mostrem contextos socioculturais mais inclusivos, mais nuançados. O museu deve ser tratado como um espaço de construções e ressignificações. E, sejamos pragmáticos, sem investimento financeiro, o interesse social que buscamos não se sustenta. Trata-se de um grande desafio, mas há o que fazer, óbvio, enquanto tudo não tiver sido destruído pelas chamas.

 

Renato Pinto

Possui título de Doutor em História Cultural pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (2011) e de Mestre em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (2003). Pós-doutor em Arqueologia pelo MAE-USP (2013). Professor Adjunto III de História Antiga - CFCH/UFPE. Foi bolsista da FAPESP durante o doutoramento. Atua, principalmente, nos seguintes temas: estudos sobre a Bretanha Romana, Roma Antiga, Imperialismo, Relações de Gênero, Sexualidade, Usos do Passado e Teoria da Arqueologia. Bacharel em História pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Participa do Grupo de Pesquisa Antiguidade e Modernidade: História Antiga e Usos do Passado, coordenação de Dr. Glaydson José da Silva e Dra. Renata Senna Garraffoni. Ano de formação: 2010, até o presente.

 

Data da última modificação: 28/09/2018, 12:31