Pesquisa Pesquisa

Voltar

Justiça penal brasileira ainda patina em teorias ao avaliar a culpabilidade do criminoso

Segundo Simone Figueiredo, doutora pelo PPGD-UFPE, variação nas decisões afeta vigência do Estado de Direito

Por Renata Reynaldo

A ação criminosa que, para existir, segundo a doutrina jurídica brasileira, precisa estar consubstanciada na tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, vem sendo abordada pela Justiça Penal nacional sem consenso argumentativo quanto ao seu condicionante de culpabilidade. Levantamento realizado pela doutora em Direito Simone de Sá Rosa Figueiredo aponta que, em relação a essa questão, as decisões do Poder Judiciário não seguem uma mesma linha de raciocínio justificativo. Essa constatação em tom de alerta, embora aborde um tema técnico que sugere difícil compreensão, repercute no dia a dia da sociedade pois, segundo a pesquisadora, interfere diretamente na vigência do Estado Democrático de Direito.

Segundo Simone, "após quase 30 anos da percepção acerca da limitação da norma em relação às mais variadas situações da vida em que o agente (autor do delito) age sem liberdade de escolha para adotar outra atitude, hoje, é nítida a ausência de compreensão, de uma forma geral, sobre a possibilidade de se exigir uma conduta diversa". E para melhor entender os conceitos-chave do estudo, a culpabilidade é entendida como a exigibilidade de conduta diversa; ou seja, quanto mais exigível for que o autor da ação delituosa aja de uma forma e adote outra conduta, sendo esta criminosa (típica), tanto maior, então, será a sua culpabilidade. E, ainda sobre a culpabilidade, ela é um dos elementos subjetivos analisados no momento da dosimetria da pena. 

Essa é a questão central da tese "Culpabilidade: análise acerca do caminho utilizado pelo Poder Judiciário brasileiro para identificação e seleção de causas supralegais de inexigibilidade de conduta diversa" que destaca que, no Brasil, para se chegar ao grau de culpabilidade de uma pessoa, o Poder Judiciário vem recorrendo, de maneira assistemática, às justificativas que estão fora da norma, ou supralegais, como afirma o enunciado do trabalho de doutorado. "Essa ausência de indicação das balizas que devem nortear uma decisão sobre a exigibilidade de conduta diversa serve de móvel para uma sensação de insegurança que, por sua vez, torna os julgadores resistíveis à admissão da tese [de não exigir do agente uma conduta diversa] em casos onde a admissão seria adequada e vice-versa", analisa Simone.

Segundo a autora, a restrita definição normativa com relação às circunstâncias onde cabe a exigibilidade de conduta diversa revela "uma carência doutrinária e também jurisprudencial (de decisões jurídicas)". À pergunta sobre quais as razões supralegais o juiz pode aplicar como justificativa para eximir um réu da sua culpabilidade, as respostas no cenário jurídico brasileiro ainda não têm uma linha de raciocínio uniforme. De acordo com o trabalho acadêmico, orientado pelo professor Francisco de Queiroz Cavalcanti, no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE (PPGD), ao apreciar questões dessa natureza, por se basearem em argumentos de caráter supralegais, muitos doutrinadores ainda discutem a tese, tanto contrária como favoravelmente ao argumento da exculpação do agente em função da impossibilidade de exigir conduta diversa.

CÓDIGO | E a razão é que o Código Penal Brasileiro (CPB) deixa claro que só há duas hipóteses de uma pessoa assumir uma conduta comumente tida como crime sem que lhe recaiam consequências penais por expressa falta de culpabilidade. São elas: quando em obediência a uma ordem hierárquica, desde que não tenha discernimento sobre a tipicidade (delituosidade) da ação, e quando sob coação moral irresistível. Mas a tese de Simone se debruça justamente nos casos em que a ação delituosa não se enquadra em nenhum desses casos e, mesmo assim, alguns magistrados, partindo do pressuposto de que o legislador deixou de prever inúmeras outras situações em que é possível se aplicar o instituto da não exigibilidade da conduta diversa, acolhe livremente o raciocínio que leva à não responsabilidade, ou exculpação do agente.

A partir da análise de jurisprudências, Simone visou alcançar as bases que os julgadores brasileiros devem observar em uma decisão que verse sobre a admissão de causas supralegais de inexigibilidade de conduta diversa, expondo, assim, os caminhos que devem ser utilizados para se obtenha uma jurisprudência com homogeneidade satisfatória a um Estado Democrático de Direito, ou seja, suficientemente harmoniosa, coesa. Pra a jurista, inexiste, "frise-se", um caminho traçado pela doutrina ou mesmo pela jurisprudência para a verificação concreta de uma causa supralegal de acolher os casos de inexigibilidade de conduta diversa coerente com a riqueza das possibilidades da vida, ou seja, com a realidade.

CASOS | E como exemplos da aleatoriedade de justificativas utilizadas pelos juízes, a pesquisadora destaca que o tipo penal descrito no artigo 168-A do CPB, a Apropriação Indébita Previdenciária, é o que tem maior repercussão, "pois foi a partir de processos sobre o tema que se disseminou a admissão de causas supralegais de inexigibilidade de conduta diversa". Outros exemplos de menos impacto, mas que ilustram bem a questão central da tese, ou seja, quando o autor ou autora do delito não se beneficiam do instituto da inexigibilidade de conduta diversa, isto é, da excludente de culpabilidade, ou o contrário, favoreceu-se desse instituto, também são elencados no trabalho.

A primeira hipótese - de quem não se beneficiou do instituto -, cabe no caso de uma ré, prostituta, viciada em drogas, com dois filhos já entregues aos cuidados da avó, e que diante da terceira gestação praticou aborto amparado. Embora na primeira decisão o Poder Judiciário tenha a absolvido sumariamente em razão do reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa, o Ministério Público apelou alegando que é inadmissível o reconhecimento da tese, com, o argumento de que "a ré poderia ter evitado a gravidez e o fato de ser viciada em drogas e ter outros dois filhos, circunstâncias não provadas, não justificam o ato criminoso".

Segundo trecho do acórdão analisado pela pesquisadora, sobre o caso citado, foi exposto que tais hipóteses - a admissão de causas supralegais de inexigibilidade de conduta diversa - são raras e que a adoção da tese constitui uma ameaça à segurança jurídica. Explicou o julgador: "Os fundamentos constantes da sentença para reconhecimento da excludente ré viciada em drogas, prostituta, que já possui dois filhos sob a guarda da avó, são insuficientes para afastar a apreciação dos juízes naturais da causa jurados. Na hipótese, a ré não comprovou, prima facie, de modo cabal, estreme de dúvida e inequívoco, a necessidade de tirar a vida do feto". 

Em contrapartida, o trabalho de doutorado cita outro caso, em que o réu foi favorecido pela tese central analisado no estudo. "No ano 2000, com o Brasil apresentando problemas econômicos, alguns brasileiros deixavam o país em direção aos Estados Unidos. Com a finalidade de obter melhorias de vida, buscavam emprego com melhor remuneração. A aquisição do visto americano não era fácil, o que ainda possível de se verificar atualmente, mesmo que em menor proporção. Naquele período, alguns casos foram apreciados pela Justiça Federal, entre eles, um caso paradigmático”, enuncia Simone. E complementa: “No processo nº 96.02.31347-1/RJ, o juiz de primeiro grau, ao analisar o caso onde o agente alterara a foto de um passaporte com a finalidade de ingressar nos Estados Unidos em busca de emprego, o absolveu com fundamento na inexigibilidade de conduta diversa".

Ao tomar uma posição acerca da problemática exposta, a autora do estudo salienta que "é importante ressaltar que, a partir da identificação das balizas, do caminho a ser seguido necessariamente para eleição dos valores considerados aptos a considerar existente a ausência de liberdade do agente, a inexigibilidade de conduta diversa como exculpante torna-se menos indefinida, uma vez que são trazidos contornos mais fortes para essa garantia tão importante em um Estado de Direito, que evidencia o respeito à dignidade humana: a culpabilidade".

Pesquisadora sugere parâmetros de calibração para balizar decisões
 
Tomando por base os estudos de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, mais especificamente a sua teoria sobre ideologia e as chamadas regras de calibração, a pesquisadora Simone Sá Rocha propõe, como elemento novo da sua tese, a aproximação da Filosofia do Direito, a partir do pensamento do autor, com o Direito Penal. “A constituição atual da exigibilidade ou inexigibilidade de conduta diversa e a inerente abstração desse conceito, o que é justificado pela impossibilidade de se prever todas as possibilidades concretas em que não existe liberdade ao agente entre praticar ou se abster uma conduta ilícita, não é estranha à percepção desse teórico”, justifica.

Como caminho para a solução do problema, Simone defende uma observação mais apurada das relações existentes entre a sociedade, entendida como um sistema de interações múltiplas onde a complexidade de expectativas interativas é reduzida e se torna controlada, e os processos de conhecimento, acrescentando a questão do controle social que a própria ciência realiza, visto que a vida cotidiana está condicionada à interpretação da realidade de modo coerente e significativo. “Com o aumento de conflitos de expectativas controláveis pelo Direito e, um Direito que troca seus dogmas por posição deve ser, inevitavelmente, mais maleável, mas isso não pode ser um fator de instabilidade”, alerta, a pesquisadora. 

Segundo aponta o estudo, à luz do pensamento de Ferraz Jr., o controle dessa complexidade real e de sentido deve ser feito por meio de diversos mecanismos denominados de centros ou núcleos significativos. Para o doutrinador, “como os valores são centros significativos por demais abstratos, socialmente eles tendem a ser ideologizados, sendo as ideologias avaliações de valores que lhes dão um caráter programado e hierárquico, pondo-os como fins racionais da conduta, limitando-lhes, assim, a variabilidade semântica”. E, para Simone, “as variações interpretativas servem de pano de fundo para a importante questão relativa à ideologia e valor, elementos determinantes em relação à apreciação acerca da existência ou inexistência da exigibilidade de conduta diversa pelo judiciário”. 

Em síntese, a autora da tese avalia que a ideologia funciona, no discurso dogmático (teórico), como um elemento estabilizador; valorando os próprios valores ela os fixa, quer justificando sua função modificadora, quer modificando a sua função justificadora. “Dessa forma”, destaca, “a ideologia exerce uma função de suma importância que é organizar os valores, possibilitando a sua sistematização, a construção de certas hierarquias o que, em última análise, resulta na possibilidade de integração de interesses e de sua realização, bem como na possibilidade de sistematização do próprio discurso dogmático”. 

Após mergulhar na teoria de Tércio Ferraz Jr. a autora chegou à conclusão de que a ideologia calibra o sistema dogmático na medida em que só por ela é possível determinar, num certo contexto, que tipo de integração ou unidade o mesmo deve possuir como um todo, para que as suas proposições constituam cadeias válidas e, consequentemente, que tipo de autoridade deve ser presumida como legítima. ”Entendemos que a única forma de se fazer um juízo acerca da adequação ou inadequação de uma decisão sobre a aplicação do instituto da inexigibilidade de conduta diversa, em relação ao sistema jurídico-penal, é por meio da verificação de sua correspondência com o que Ferraz Júnior denomina de ideologia", pontua Simone Sá Rocha. 

Mais informações

Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE (PPGD)
(81) 2126.8689
ppgdufpe@gmail.com

Simone de Sá Rosa Figueiredo
simonedesarf@yahoo.com.br

Data da última modificação: 28/02/2018, 17:15