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Tese propõe que uma educação sexual antiLGBTfóbica seja aplicada no ensino básico no Brasil

Pesquisa aborda perspectiva das quatro escolas de Marie-Bénédicte Dembour

Por Petra Pastl

A educação sexual, da forma como foi aplicada nas instituições de ensino básico no Brasil, tem sido equivocadamente concebida como uma possibilidade de poder político apenas do tempo presente. A novidade das últimas décadas seria fazer dessa educação um direito fundamental capaz de emancipar sujeitos e não mais reprimi-los, como fora estabelecido no Ocidente desde o século XIX. Foi pensando nisso que o pesquisador Arthur Albuquerque de Andrade escreveu a tese de doutorado intitulada “O direito à educação sexual na perspectiva das quatro escolas de Marie-Bénédicte Dembour: uma análise jurídica sobre a heterocisnormatividade e o bullying LGBTfóbico no Ensino Básico”, apresentada, este ano, ao Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD), no Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com orientação da professora Antonella Bruna Machado Torres Galindo e coorientação da professora Flávia Danielle Santiago Lima.

Na sua tese, Arthur Andrade, logo de início, parte da identificação de três grandes propostas jurídico-pedagógicas que partem da heterocisnormatividade vivenciada no ambiente escolar e chegam à tentativa de implementar uma ementa antidiscriminatória e de punir o bullying LGBTfóbico. Em seguida, ele avalia as propostas sob a ótica dos direitos humanos, adotando a perspectiva da jurista e filósofa belga Marie-Bénédicte Dembour como marco teórico.

A necessidade de se estabelecer uma ementa própria ou transversal antiLGBTfóbica ou de punir o bullying LGBTfóbico existe porque a própria estrutura do estabelecimento escolar é arquitetada com base nos papéis binários sociais de gênero e no incessante combate à sexualidade infantil. No Brasil, as turmas, principalmente nas aulas de educação física, são separadas pelo sexo biológico feminino e masculino. Assim, os cuidados e as percepções sobre cada um dos alunos também. Consequentemente, explica Andrade, quem desafia os papéis de gênero atribuídos a todos não se enxerga em nenhuma dessas separações estabelecidas no ambiente institucional (legítima), restando-lhe os espaços (ilegítimos) de bullying ou da negligência.

De acordo com Arthur Andrade, em referência a Wendy Brown, as forças conservadoras neoliberais contrapõem-se à educação sexual antiLGBTfóbica a partir de quatro pilares argumentativos. O primeiro seria o direito à liberdade de expressão. O segundo pilar é o direito à propriedade. O terceiro é a separação entre a discriminação ao ato da discriminação ao indivíduo. O quarto é o suposto equilíbrio entre as bandeiras liberais e conservadoras, as quais se convertem em um “mercado de ideias”. “Em linhas gerais, a citada ‘controvérsia’ se estabelece à medida que, pelo primeiro pilar, todos temos o direito de nos expressar, inclusive sobre os rumos do nosso estabelecimento (exemplo: escolas), do qual somos proprietários – ressalta-se o segundo pilar –, ainda que essa expressão não reconheça, por exemplo, a união homoafetiva, uma vez que se ataca a união e não o homossexual (como o estabelecido pelo terceiro pilar). Tudo isso sob a ideia de se poder contrapor supostas ‘bandeiras’ levantadas pela academia e pela ciência, a fim de se atingir um dito maior ‘pluralismo’ de ideias (quarto pilar)”, explana o doutor em Direito.

Ainda segundo o pesquisador, mesmo que uma matéria específica abordando o tema da educação sexual não seja implementada nas escolas – algo que não seria obrigatório, mas poderia funcionar bem como local de diálogo aberto e aprendizagem –, o assunto em si poderia perpassar todas as disciplinas ofertadas na grade escolar, pois os professores podem abordar assuntos que sejam correlatos aos que ensinam, ainda que subjetivamente. “Isso é muito amplo, a educação sexual é muito além do que falarmos de sexo, embora isso faça parte. É uma questão de desmistificarmos a identidade, o gênero e tudo o que foi convencionalmente considerado ‘normal’. Por exemplo: se um professor de matemática espera que os alunos sejam melhores na sua matéria do que as alunas, isso é uma convenção, e que precisa ser revista e desfeita”, explica Arthur Andrade.

Em síntese, foram elencadas sete lições, na tese de Andrade, a que as escolas do ensino básico deveriam prestar atenção para ter uma ementa antiLGBTfóbica: (i) não fazer distinções de gênero baseadas em algum binarismo; (ii) não invisibilizar e sim afirmar a existência de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis etc.; (iii) reconhecer o docente enquanto corpo dotado de cor, etnia, classe, gênero ou orientação sexual, para além do intelecto e do conhecimento imparcial; (iv) preencher as vagas docentes de modo plural; (v) não se furtar e até estimular as narrativas e as reações com sentimentalismos; (vi) construir pontes entre o ensino e a realidade social de grupos vulneráveis, através dos movimentos sociais; e (vii) encurtar a linguagem (verbal) entre opressores e oprimidos, ao acolher estratégias de enaltecimento da segunda. Essas lições são dirigidas essencialmente para os educadores. Diante disso, convém perquirir como esses educadores costumam encampar ou receber práticas pedagógicas emancipatórias.

Outras estratégias para a educação são vislumbradas pelo pesquisador, sobretudo para o ensino jurídico superior. Isso porque as faculdades de Direito, principalmente as públicas, segundo Arthur Andrade, são um dos poucos locais de resistência institucional à discriminação de gênero e de orientação sexual e, portanto, podem servir de referência ao ensino básico. Além disso, trata-se do local onde a pesquisa é desenvolvida, o que não poderia ser esquecido quando se almeja construir um saber não somente científico, mas também emancipatório – como seria a própria educação sexual almejada e defendida por Andrade.

A tese acredita nas universidades, principalmente nas públicas, como contextos onde se pode fomentar essa conscientização, por serem espaços de resistência aos descritos interesses empresariais do regime neoliberal – inclusive, professores do ensino básico formam-se necessariamente com professores do ensino superior. Nesse sentido, algumas estratégias foram pensadas, focando na educação em um quadro mais amplo, respeitante aos direitos humanos em geral, até porque a própria discriminação sexual por gênero e orientação é um recorte dentre outros possíveis, como o da cor e o da deficiência física ou cognitiva.

Em linhas gerais, a ideia é desconstruir e reconstruir (Derrida) o poder e a consequente “sujeição” (Foucault) performada na linguagem (Butler) entre docentes e discentes, tendo por objetivo compor um espaço comunicativo de maior consenso democrático (Habermas), capaz de fazer da educação um projeto moral realmente emancipatório (Donnelly). O docente, então, deveria se situar de modo integral (mente-intelecto e corpo-cor-gênero) (Hooks), pois assim também estaria situado o discente. Nesse exercício racional e, especialmente, sentimental (Rorty), pode-se conseguir uma identificação e uma emancipação recíprocas na sala de aula (Freire). Relatar e estimular relatos das vivências na infância, na maternidade e na paternidade, sobremodo quando experienciadas por pessoas fora do padrão heterocisnormativo – entre outros padrões – faz parte de uma das estratégias. Ajuda a conectar pessoas cujos rótulos sociais as categorizavam como distantes.

Nessa perspectiva, a educação sexual antiLGBTfóbica, afora proteger pessoas LGBTQIA+, marca um novo paradigma educacional dentro dos direitos humanos. Esse paradigma é imprescindível em um contexto onde imperam os interesses do neoliberalismo cristão discriminatório (no público) e as falácias da família protetora e acolhedora da dignidade da criança e do adolescente (no privado). “O resultado é o estabelecimento de um vínculo diferente do pactuado entre o Direito, a educação e a sexualidade nos últimos séculos. A gramática – como diria Derrida – não pode mais permitir signos linguísticos – jurídicos, educacionais ou sexuais – construídos para ‘assujeitar sujeitos’. Ela deve ser reconstruída a fim de servir à emancipação, latente, presente e politicamente necessária em todos nós: primeira pessoa do plural, sem voz passiva ou singular”, conclui Arthur Andrade. 

Mais informações
Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE
(81) 2126.8689 

ppg.direito@ufpe.br 

Arthur Albuquerque de Andrade 
albuquerquerarthur@hotmail.com

Data da última modificação: 02/06/2023, 15:34