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Artigo do Código Penal abre espaço para Justiça Restaurativa, uma alternativa para atenuar penas

Dispositivo permite que a pena seja reduzida em razão de uma circunstância considerada relevante, que ocorra antes ou após o crime

Por Maik Santos

Em um país marcado pela presença da violência, é fundamental se abordar cada vez mais a construção de uma cultura de paz no contexto da administração de conflitos. Além disso, a superlotação dos presídios brasileiros abre espaço para alternativas que visam diminuir a pena e auxiliar na ressocialização dos indivíduos. A partir dessa problemática, a pesquisadora Maria Walérya Souza Cipriano elaborou sua dissertação de mestrado “Cultura de Paz e Justiça Restaurativa: análise do uso das práticas restaurativas como circunstância atenuante inominada da pena”, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFPE, sob orientação da professora Maria José de Matos Luna.

Ao buscar um espaço legal onde as práticas restaurativas poderiam ser utilizadas, com o intuito de ampliar sua atuação, a pesquisadora identificou o Artigo 66 do Código Penal Brasileiro, que permite que a pena imputada a um ofensor seja atenuada em razão de uma circunstância considerada relevante, que ocorra antes ou após o crime, mesmo que tal circunstância não esteja prevista na lei. A partir de análise qualitativa de dados, Walérya conclui que o artigo abre, sim, espaço para o uso da Justiça Restaurativa como meio atenuante de pena. 

A pesquisa também discutiu a forma como a violência se tornou um mecanismo para solução de divergências. Contudo, ressalta que não se trata de um processo natural do homem. “Ninguém nasce violento, mas torna-se violento”, afirma a mestra. Maria Walérya também aponta que. uma vez que a violência é uma construção, é necessário que o método de ação utilizado para enfrentar problemas nessa seara trabalhe valores opostos a ela, ou seja, que o mecanismo de ação seja baseado na não violência.

FALTA LEGITIMIDADE | O estudo acabou por evidenciar uma crise no sistema punitivo atual, que pode ser caracterizada pela falta de “legitimidade da pena, superlotação dos presídios, precariedade do sistema penitenciário, descumprimento dos direitos dos presos, altos índices de reincidência, além de rebeliões e massacres nas prisões”, de acordo com Maria Walérya. Para a autora, “esse sistema penal termina por retroalimentar um círculo da violência que só reforça sua debilidade, mostrando-se incapaz de garantir a responsabilização e a reparação dos danos causados pelo crime através do diálogo e do respeito à dignidade humana”. 

Outro ponto observado na dissertação é que, no processo judicial comum, o jogo adversarial criado conduz o ofensor a procurar defender apenas seus próprios interesses, fazendo o que estiver ao seu alcance para se livrar da punição. “A maneira como o processo se estrutura prejudica a todos, pois o ofensor passa a não reconhecer sua responsabilidade em relação ao crime, enquanto a vítima se empenha em uma busca desenfreada por provas e pela elaboração de argumentos que possam garantir que o ofensor pague pelo crime que cometeu de alguma maneira”, coloca. E sintetiza: “Nesse procedimento automatizado, não há espaço para reflexão, diálogo, construção coletiva de responsabilidade ou reparação de danos.” 

Os resultados foram obtidos após levantamento de dados, através de pesquisa qualitativa, aplicada e documental. A autora também analisou o panorama geral do sistema penal e das práticas restaurativas no Brasil, os dados contidos nos mais diversos relatórios, documentos e pesquisas sobre o tema. A pesquisa documental, por sua vez, envolveu algumas legislações brasileiras, como o Código Penal, a lei que institui os Juizados Especiais, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o projeto de lei 7.006/2006, entre outros. Além disso, também foram analisadas recentes portarias e resoluções do Conselho Nacional de Justiça que envolvem a Justiça Restaurativa, bem como decisões judiciais envolvendo a utilização da atenuante inominada.

Maria Walérya Souza Cipriano conclui que a Justiça Restaurativa se trata de um paradigma complexo, que exige muito trabalho e muito estudo sobre sua utilização e que a ideia de sua expansão apesar de encantar num primeiro momento, precisa também ser bastante ponderada. “Isso porque não se quer a Justiça Restaurativa se transforme em mais um método que foi incorporado pelo Poder Judiciário, mas que apenas repete o mesmo processo com uma nova roupagem”, reflete.

Prática propõe visão de paz aos conflitos criminais

Para contextualizar a dissertação, Maria Walérya Souza Cipriano resgatou a história da prática da Justiça Restaurativa que, criada nos anos 70 pelos menonitas norte-americanos, grupo de denominação cristã que descende dos anabatistas, prima pela criatividade e sensibilidade na escuta das vítimas e dos ofensores. Segundo a pesquisa, os menonitas e também outros profissionais de Ontário, no Canadá, e depois do estado de Indiana, nos Estados Unidos, realizaram encontros entre vítima e ofensor, aplicando sua fé e visão de paz aos conflitos criminais, dando origem a programas que serviram de inspiração para projetos em vários países.

A primeira iniciativa oficial a que envolvia a Justiça Restaurativa foi o Programa de Reconciliação Vítima-Ofensor, criado nos Estados Unidos. A partir de seus resultados positivos, o programa se expandiu e surgiram novas formas de aplicação, possibilitando sua propagação e permitindo que várias metodologias antigas fossem remodeladas e passassem a ser denominadas restaurativas. Enormemente beneficiada pelo legado dos povos nativos da América do Norte e Nova Zelândia, a prática, as origens e precedentes dessa prática também devem muito a esforços anteriores e a várias tradições culturais e religiosas, raízes essas, tão antigas quanto a história da humanidade.

METODOLOGIA | Uma das metodologias mais utilizadas na Justiça Restaurativa é a presença do facilitador, uma pessoa que ocupa o lugar de mediador entre vítima e ofensor, de forma imparcial e com devido respeito às partes, que conheça não só o caso como a cultura da comunidade. O encontro não necessita ser obrigatoriamente cara a cara, podendo ter o facilitador como uma espécie de mensageiro. No entanto, o encontro é uma grande oportunidade para ambos expressarem seus sentimentos e impressões em relação ao delito. 

Segundo destaca a dissertação, "é essa ocasião que permite que vítima e ofensor ganhem feições, que esclareçam possíveis dúvidas e façam perguntas um ao outro diretamente, e, assim, busquem uma forma de corrigir a situação". Lá, a vítima tem a chance de contar ao ofensor de que forma aquela experiência impactou sua vida, dando ao ofensor a oportunidade de ouvir e começar a perceber os reais efeitos de seu comportamento. Uma grande vantagem desse momento é que traz a possibilidade de aceitação da responsabilidade e também de um pedido de desculpas.

O estudo de Maria Walérya apontou que as conferências restaurativas ou conferências de grupos familiares ampliam o círculo de participantes, incluindo também os familiares ou outras pessoas significativas para as partes diretamente envolvidas. Nesse modelo, procura-se dar um maior suporte ao ofensor e por isso conta com a participação de sua família e pessoas relevantes da comunidade, com o objetivo de que ele reconheça o dano de sua conduta. Esse modelo é visto por muitos defensores da Justiça Restaurativa como um grande avanço, uma vez que amplia o leque de participantes e permite que os conflitos e problemas possam ser trabalhados dentro de uma família maior e contextos comunitários.

Além desses modelos mais utilizados, também existem outras formas de aplicação da Justiça Restaurativa, como mecanismos de apoio à vítima, comitês de paz, conselhos de cidadania e serviço comunitário. Uma das práticas mais promissoras é a penetração dos princípios da Justiça Restaurativa em iniciativas de pacificação decorrentes de graves violações aos direitos humanos, como a Comissão da Verdade e Reconciliação, da África do Sul, e a Justiça Restaurativa nas prisões (verificada na Bélgica e em outros países).

Mais informações
Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFPE
(81) 2126.8766
ppgdh@ufpe.br

Maria Walérya Souza Cipriano
waleryadamasceno@gmail.com

Date of last modification: 11/09/2018, 15:31