Articles Articles

Back

Recordações da Boa Vista

Vice-reitor Gilson Edmar
 
Um passeio pelas ruas da Boa Vista me traz gratas recordações desse bairro recifense cheio de belas histórias orais, muitas delas reais, outras verdadeiras lendas, criadas no imaginário de seus habitantes. No Carnaval, a Boa Vista se transformava em alegria. Alguns clubes carnavalescos tinham suas sedes em casarões de suas ruas, como o Cachorro do Homem do Miúdo, na Ilha do Leite, mais precisamente na Rua Marques do Amorim, bem próximo à Visconde de Goiana, passarela dos seus ensaios e onde morei quando criança. Quando coincidia o ensaio com o meu aniversário, no dia 1º de fevereiro, eu era acordado, noite alta, para receber o cumprimento do seu estandarte. Essa homenagem tornou bela a lembrança desses meus aniversários. Onde estiver, Cachorro do Homem do Miúdo, receba agora a minha gratidão.
 
A Ilha do Leite foi o local onde morei na minha adolescência. Quiseram chamá-la de Parque Capibaribe, porém o nome nunca saiu do papel. Se antes só existiam residências, hoje essas são cada vez mais raras. As cheias marcaram a área para sempre, mas mostraram quanto os moradores de lá eram solidários.
 
A esquina da FriSabor (que começou com o nome de KiSabor), era o ponto de encontro dos amigos que iam à missa das 5 aos domingos no Salesiano ou quando da volta da casa das namoradas.
 
Esse bucólico bairro tem praças que atravessaram os tempos: a Chora Menino e a Maciel Pinheiro, entre outras. Tinha dois cinemas, o Boa Vista e o Politeama, com seus filmes e seriados. O Politeama se transformou depois na Rádio Tamandaré, com alguns programas de auditório.
 
As peladas de futebol ocorriam no Colégio Salesiano e também no areial da prainha, às margens do Capibaribe, na Ilha do Leite. Não eram raras as ocasiões em que grupos se formavam para jogar voleibol ou futebol com times de outros bairros, como Casa Amarela. As disputas esportivas eram menos importantes, pois o objetivo era conhecer e namorar as moças de lá. Alguns conseguiram, outros tentaram conseguir. A Boa Vista deu vários atletas aos nossos clubes. Muitos deles começaram no Jet Clube, local também das festas do bairro. Participávamos ainda do Carnaval e do São João do Clube Português.
 
As casas da Boa Vista eram residências de bonitas garotas. Uma, na Rua das Ninfas, despertou paixões adolescentes. Na Ilha do Leite eram tantas que torna difícil enumerá-las. Com uma delas me casei e tive meus três filhos: André, Rodrigo e Daniela. A família cresceu com a chegada de Beatriz, minha neta.
 
O velho Hospital Pedro II foi local da assistência à saúde de uma época e sede do curso clínico da Faculdade de Medicina, onde me fiz médico. Seus corredores, pátios e enfermarias lembram como tudo começou, nesta área do saber. Seu papel formador induziu a criação do pólo médico do Recife, um dos mais respeitado do Brasil.
 
As igrejas eram locais de encontros dos moradores do bairro O comércio variava entre as movelarias e as madeireiras, quase todas de propriedade de judeus. As alfaiatarias eram dos italianos: Imbeloni, Sarubbi, Perrelli, esta última ainda existente e continuo como seu cliente.
 
O Mercado da Boa Vista, único na cidade com um pátio e um estacionamento interno, e a Padaria da Santa Cruz, que ainda fabrica um delicioso biscoito de massa folhada, eram locais que outrora abasteciam a nossa casa.
 
Essas recordações trazem de volta para mim d. Sevy, minha mãe, tão querida na Boa Vista e na Ilha do Leite, que tudo isso se confunde com ela, pois se relacionava com todos, pobres e ricos, anônimos e poderosos com um carinho semelhante ao que transmitia em casa.
 
Sua simplicidade e sua fortaleza construíram um sentimento de amor em torno de si, que irradiava para todos, especialmente para nós, da família. Sua docilidade contrastava com a firmeza de suas decisões. Desde jovem soube defender um ideal. Ajudou como mulher de uma época, na Revolução de 30, a esconder material para que os algozes não os encontrassem nas mãos de parentes idealistas. Quando nada podia fazer, chorava, como chorou as injustiças cometidas a tantos outros idealistas. Isso ocorreu em 1964, com pessoas que admirava, como os doutores Salomão e Miriam Kelner, seus antigos vizinhos, e com o jornalista Carlos Garcia, nosso primo e filho de Maria, sua quase irmã. Essa postura de uma mulher frágil e, ao mesmo tempo, grandiosa, me faz orgulhoso de ter sido seu filho.
 
Gilson Edmar Gonçalves e Silva
ge@ufpe.br Este endereço de e-mail está protegido contra SpamBots. Você precisa ter o JavaScript habilitado para vê-lo.
 
Publicado no Jornal do Commercio em 30.01.07
Date of last modification: 31/10/2016, 11:24

Nested Portlets Nested Portlets